Entre o cotidiano e a fantasia, o Cavalo-Marinho dá vida às tradições de Pernambuco enquanto reflete as transformações sociais e culturais do Estado
Texto de Beatriz Santana e Guilherme dos Santos

A velha um dia havia sido casada, mas há tempos estava separada do ex-marido. Em casa, já solteira – e também fogosa –, restou-lhe o assanhamento e a dedicação aos cuidados com os animais de criação, como ema, galinha, peru e pato. Certo dia, no entanto, percebe a ausência da Ema, que estava pondo ovos, e decide procurar o bicho. Na busca, acaba chegando a um lugar muito animado, e pergunta ao cômico Mateus a respeito daquilo. Estava acontecendo uma festa, como ele a contou, a qual era liderada pelo Capitão-Marinho.
Encucada com o desaparecimento do animal e obstinada a encontrá-lo, pergunta se alguém tinha visto a Ema. A resposta foi negativa, e a velha, apoiada em seu bambu, nem imaginara que o próprio Mateus já tinha até comido o ovo do bicho. Já envolvida na atmosfera do terreiro, tomou a mão da solteirice e começou a dançar e brincar junto dos outros. A presença do velho Mané Joaquim, o ex -marido da Véia do Bambu, porém, surpreendeu a mulher. “Mas se não tem tú, vai tú mesmo, não é?”, e a recaída para o namoro foi certa.
Com um ano e 14 meses que eu desci do meu sertão, Com um ano e 14 meses que eu desci do meu sertão, Eu vim encontrar meu véi na roda do Capitão
cançoneta cantada pela Véia do Bambu
É nesse meio tempo que mais uma figura aparece: dessa vez é a Morte, que leva o velho, agora morto, deixando a senhora viúva. “Tá morrido”, anuncia Mateus. O padre, então, é convocado para rezar o corpo, mas, importunado pela Véia do Bambu, o sacristão desiste de fazer o trabalho. Por fim, é o próprio Diabo que chega para tomar o corpo e a alma de Mané Joaquim de vez.
De casada a solteira, de solteira a namorada, de namorada a viúva, a história da Véia do Bambu, com seus altos e baixos, é uma alegoria dos causos reais da vida cotidiana. Compondo os 76 personagens presentes num folguedo tradicional e rico em diversas artes, a Véia, o Mateus, a Ema, o Diabo e tantos outros fazem parte do enredo real-fantástico do Cavalo-Marinho, que, por meio do teatro, da música, da dança e da poesia, atravessa tempo e território em uma cultura popular que se reinventa. Neste especial de Carnaval da Manguetown Revista, descubra mais sobre essa tradição cultural pernambucana.

Enquanto o profano se sacraliza, o fantástico ganha vida
É no Cavalo-Marinho que o terreiro vira um grande palco, e na Zona da Mata Norte de Pernambuco, o espaço entre o anoitecer e o raiar do dia é preenchido pela fantasia. Além das dezenas de personagens, os figurinos, as loas e os versos também são fundamentais na extensa história contada no folguedo, que tem cerca de oito horas de duração, tradicionalmente.
“Descobrir que a brincadeira começa à noite e vai até o nascer do dia é, de certa forma, chocante, né? Como uma pessoa se predispõe a dançar, tocar, encenar, a fazer de tudo em um teatro de rua que dura oito horas?”, questionou Igor, mestre em música pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Tanto com a dicotomia sagrado-profano, como com o fantástico mesclado ao dia a dia, é possível justificar o encantamento pelo Cavalo-Marinho. O sagrado, que se manifesta no diálogo entre o catolicismo popular e a Jurema Sagrada, como na festa planejada pelo Capitão-Marinho para os Santos Reis do Oriente e na presença de Caboclos, contribuem para transportar quem está por perto para um momento de conexão com a própria espiritualidade.
Com um som marcante e inconfundível, a rabeca também potencializa a dimensão simbólica da brincadeira, como explicou Igor. “Por ser a rabeca e o arco tocando em cruz, o instrumento assume uma simbologia de proteção”, disse.

O profano, por sua vez, toma conta de toda a brincadeira e diverte quem participa e quem assiste as figuras caricatas que refletem, de forma exagerada, as relações interpessoais. “As narrativas comuns que são sempre apresentadas de uma forma cômica e sexual, mas nunca explícita”, definiu Igor.
Para mestre Grimário, 59 anos, esse humor, que se dá através das “puias”, ou “safadezas”, como ele traduz, é importante para a integração de todas as pessoas presentes na brincadeira. “Desse jeito a energia do povo passa para a gente, e a da gente passa para o povo, e por aí vai!”, diz.
Superados os desafios, a tradição se reinventa
Mergulhado há 50 anos na cultura popular, José Grimário da Silva, o mestre Grimário, já está à frente do Cavalo-Marinho Boi Pintado há 31 anos, quando fundou o grupo. Natural de Aliança, Zona da Mata, tornou-se Patrimônio Cultural Vivo de Pernambuco em 2022, pela sua contribuição às tradições e valorização às manifestações do estado. Brincante desde os nove anos, coleciona memórias de outros momentos da brincadeira.
“Uma das mudanças é que a gente é contratado”, explicou o mestre, “Já não tem mais o bozó, o baralho, a venda de amendoim, da cocada, de laranja, de castanha, que era o sustento do Cavalo-Marinho”, completou.
Junto à visibilidade e o cachê de alguns grandes eventos culturais, como os fomentados por editais públicos, está presente o engessamento das apresentações de Cavalo-Marinho, que tem as sambadas de longa duração substituídas por shows de apenas 30 a 60 minutos.
“Não é mais aquela brincadeira sem som, no terreiro, com a poeira cobrindo, com a gente dizendo a puia, brincando um com o outro e ficando mais à vontade”, lamentou o brincante, que explica que, dessa maneira, muitas loas, versos e personagens são perdidos. “Já não é apresentação, é show. E a gente tá perdendo muito, sabe?”.
Apesar disso, mestre Grimário demonstra a felicidade por receber o título que simboliza a transmissão de cultura e diálogo entre as gerações. “A emoção foi muito grande, porque era um sonho”, disse o patrimônio, “eu sempre digo que o título não é meu, é dos brincantes”. No Carnaval deste ano, ele também é o grande homenageado na cidade natal, Aliança, honraria que, como diz, nem estava esperando.
Mestre Grimário segue cumprindo seu papel de cultivador da cultura, através da Escola da Tradição, onde ele compartilha há dois anos os ensinamentos do Cavalo-Marinho para além de um curto show.
“Espero que quem brincar Cavalo-Marinho não vá só fazer o brilho e a dança, mas pense em aprender personagem, o que é muito importante. Porque o Cavalo-Marinho não depende só do brilho, depende da boniteza… e da feiura também”, afirmou.

Espelho da realidade
Caracterizado como “arruaça” no primeiro registro oficial feito por delegados em 1871, o “Cavalo-Marinho” tem se mostrado, na realidade, como uma forma de resistência político-social, além de um registro da sociedade canavieira que moldou o Estado de Pernambuco.
Ora por uma sambada mais cômica, ora por outra mais politizada, a relação patrão-empregado nunca é alterada e segue como base do Cavalo-Marinho. No passado com os negros escravizados pelos donos de engenhos, no presente com os “boias-frias” que enfrentam condições de trabalho muitas vezes desumanas nas propriedades rurais ou no universo do folguedo, com o Capitão Marinho se safando e o Mateus e Bastião sendo explorados.
Das origens nas senzalas aos palcos contemporâneos, o Cavalo-Marinho ainda resiste como uma forma de contestação, de afirmação identitária e de celebração da riqueza cultural que sobrevive, apesar das adversidades. Por isso, passado o tempo que for, continuam sendo “várias histórias que nos permitem pensar nas coisas que acontecem no interior [de Pernambuco]”, finalizou Igor.
Elas também podem brincar
Em uma tentativa de afastar as mulheres dos folguedos, por muito tempo, apenas os homens encenavam as figuras, até mesmo as femininas, do Cavalo-Marinho. Presentes ativamente na produção de indumentárias, adereços, das atividades “secundárias”, as mulheres precisaram impor o espaço que podem, ainda com muita dificuldade, ocupar no brinquedo hoje.
“Se dependesse dos homens que brincam Cavalo-Marinho a presença de mulheres estava igual”, refletiu Igor. Contudo, como não depende somente deles, grandes nomes que sustentam e elevam o folguedo da Zona da Mata Norte de Pernambuco para outros territórios são femininos. Mestra Nice é uma dessas mulheres.
Natural da cidade do Condado, na Zona da Mata pernambucana, ela sempre foi rodeada pela cultura popular desde que se entende por gente. A infância carente caminhava em paralelo com a magia do Cavalo-Marinho, e apesar das dificuldades que a família enfrentava, a menina era feliz antes de saber o que isso significava. O pai, o saudoso mestre Antônio Teles, trabalhador rural, cortava cana para dar de comer aos filhos, enquanto conciliava a brincadeira no folguedo.
Na mãe observava o trabalho dedicado à confecção dos figurinos, como chapéus e golas. “Ela mesmo quem criava os desenhos”, contou a mestra, nostálgica. A matriarca utilizava materiais como papel laminado e galão prateado, este também usado para enfeitar caixão de “anjo”, o que evidenciava a mistura da vida real com a brincadeira. “Era tudo muito voltado para o Cavalo-Marinho. Ali nascia brilhos e brilhos”, disse. Também foi no colo da mãe, em muitos momentos, que a mestra dormia durante as noites de sambada quando criança.
Cresceu com um “Mateus” bem próximo dela, pelo qual ainda cultiva forte admiração. Sebastião Pereira, conhecido como Martelo, tinha um grande cuidado com ela, por testemunhar a carência enfrentada pela família. “Em certas horas da noite, ele trazia um lanche pra mim: era um refresco numa garrafinha de crush – uma marca de refrigerante – acompanhado de um pão doce. O meu vínculo com Martelo é muito grande. É um amor que tenho pelo personagem e pela pessoa”, conta.
Apaixonado pela vida de brincante, o intérprete do Mateus sempre foi imerso no Cavalo-Marinho. Mestra Nice ainda recorda de quando terminava as horas de sambada na infância e, diferente das outras pessoas, Martelo não ia descansar. “Ele ia pra casa dele, tomava banho, comia e se direcionava de novo lá pra minha casa. Enquanto ele não via meu pai cochilando, ele não ia embora. Vê só como esses homens aguentavam o sono, não é?”, explicou.
Beirando os 90 anos, Martelo ainda assume o papel do personagem no Cavalo-Marinho Estrela de Ouro, sendo o mais antigo a dar vida à figura no Brasil. “Ele já tá andando bem curvadinho, e já precisa do apoio do Anda Já, mas quando é dia de brincar, ele pega a bexiga dele, e ele ainda deita no chão, bota as pernas para cima, levanta e cumpre a missão dele como Mateus”, contou.

A partir do convívio com essas referências, a vontade de brincar no folguedo foi despertada dentro da mestra. Com o domínio masculino, porém, a presença feminina nunca foi permitida dentro da brincadeira. “Eu fui crescendo com esse sonho, com esse anseio, e só fui ter um encontro com a cultura popular mais tarde”.
O brilho de quem nasceu para ser Mestra
Fundado em 12 de novembro de 2004, o Cavalo-Marinho Estrela Brilhante foi o pontapé que a colocou dentro da sambada. O grupo foi a realização do sonho do pai, o qual a mestra Nice fez questão de tornar real. Para isso, enquanto Antônio Teles investiu nos materiais, a filha participou dessa missão com a mão de obra. “Fui preparar as vestes e adereços, e ensaiar para que a gente pudesse concluir esse desejo do meu pai”, contou.
No novo grupo, ela assumiria o banco, lugar dos instrumentistas, tocando bage, enquanto também trabalhava na organização. A virada de chave viria em 2006, quando recebeu a oportunidade de trabalhar na prefeitura do Condado, dando aulas para crianças sobre Cavalo-Marinho, por meio do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). “Então, meu amigo, começou a febre do Cavalo-Marinho”, afirmou.
As crianças e jovens não queriam outra coisa. “Era tia Nice pra cá, tia Nice pra lá”, disse. A iniciativa rendeu frutos colhidos até hoje na cidade, e trouxe um olhar diferenciado para o papel de Nice na cultura popular. A partir da dedicação, oportunidades de viagens dentro e fora do Brasil não faltaram, e ela pôde compartilhar os saberes que aprendeu desde pequena. “Por aí afora, se você procurar Nice Teles, tem um pouquinho dela”, concluiu.
Esse universo foi se abrindo cada vez mais, até que, em 2010, em uma viagem para o Rio de Janeiro no primeiro Encontro da Diversidade Cultural, recebeu o título de mestra de Cavalo-Marinho. Com a honraria, veio também as incertezas da mulher que nunca havia presenciado outras ocupando o lugar que ela estava desbravando. De volta a casa, foi procurar os conselhos do tio, Mariano Teles, também mestre de Cavalo-Marinho.
– Tio, hoje eu tenho aqui uma revista que me dá o título de mestra de Cavalo-Marinho. Eu tenho muito medo – disse mestra Nice.
– Não é pra ficar com medo. – disse o tio. – Você não está tirando o título de ninguém. Isso lhe é dado porque você é merecedora. Procure na Zona da Mata uma mulher que faça o que você tem feito na vida dessas crianças e desses jovens pra ver se tem. O título é, mais que merecido, seu!

O amanhã reverencia o ontem
“A emoção é como se fosse a primeira vez”, disse a mestra sobre as vivências dentro do folguedo. Para ela, cada vez que vai se apresentar, novas pessoas são incluídas no público, que se interessa em ver a mulher desafiando o universo predominantemente masculino. E é com esse sentimento de orgulho, paixão e entusiasmo que ela busca cultivar as raízes da cultura que vive. Contornando a recorrente minimização da brincadeira, promove, em todo janeiro, a sambada que começa na noite e dura até o amanhecer.
“Aproveito o gancho do meu aniversário, que é no mês de janeiro. Já faz 20 anos que eu realizo essa sambada de terreiro aqui, do ladinho da minha casa, na sede do Espaço Tradições Culturais”, afirmou.
O local, construído por meio do recurso de um prêmio, reúne do mais novo ao mais velho numa única missão: a de viver a cultura. E quando chega a época do Carnaval, aí é que a sede não dorme nem esvazia. “Duas, três horas da manhã estão todos bordando e costurando”, explicou mestra Nice, que pontua que o que move todos ali é o amor pela arte.
Às altas horas da noite, quando o espaço ainda borbulha com as atividades, nem mesmo a fome barra a força tarefa. Uma grande quantidade de cuscuz, mortadela, salsicha, acompanhada de uma garrafa de café, é preparada pela mestra.
“Eu sei que enquanto tô ocupando a mente daquelas crianças e pré-adolescentes, principalmente com 12, 13 anos, eu tô evitando que estejam no mundo das drogas, da prostituição, do alcoolismo, e valorizando a cultura, sabe? A minha vida é essa”, pontuou.
Em novembro de 2024, um novo brilho nasceu a partir do desejo e sede pela cultura das crianças do Condado. Derivado do Estrelas Brilhante, é o Cavalo-Marinho Estrelas do Amanhã que abre espaço para que novas histórias, personalidades e tradições brotem. Os ensinamentos da mestra e o desempenho dos novos brincantes surpreendem àqueles que assistem. “Isso aí é gente velho em corpo de criança”, dizem, segundo mestra Nice, o público que presencia a apresentação das crianças.
A descoberta de novos nomes e a continuação da brincadeira por meio da nova geração aquece o coração daquela que um dia também desejou, ainda criança, fazer parte desse mundo. Ela cita, feliz, o pequeno Leandro, mestre do novo grupo. “Ele é o menor de todos, e é o melhor de todos. Todo mundo admira”.
Harlan, de apenas 6 anos, também é um dos que brilham na nova sambada. Começou a viver na cultura popular desde os 4 anos, no maracatú, idade em que o pai, João Paulo, também iniciou como brincante. Ao observá-lo, mestra Nice tinha outros planos para o menino dentro do novo grupo que nascia. “Olha, eu vou botar Harlan para mestrar o Cavalo-Marinho Estrela do Amanhã”, disse ela ao pai do garoto. “Tia Nice, vá dizer isso pra ele, pra você ver o que ele vai dizer”. Foi o que a mestra fez, para receber de volta:
–Tia, eu vou ser Mateus. Eu não quero ser mestre, eu quero ser Mateus! – pontuou o pequeno.
A emoção foi certa. Para expressar o sentimento diante do que se seguiria, convoca o alfabeto. “Eu digo a você com todas as letras: esse já nasceu sabendo. O corpo, a fala, o jeito, a mímica”, explicou.. Tudo a fascinou, e ela não deixou de ver no pequeno intérprete do Mateus outro que também dá vida ao personagem e que tem um lugar especial nas memórias e no coração da mestra. “No dia da apresentação as lágrimas rolaram”, disse, “ele me surpreendeu: parecia Martelo jovem”.
Hoje, onde chega, mestra Nice é celebrada pelo papel, enquanto mulher e mestra, dentro do Cavalo-Marinho, além do esforço e dedicação para manter a tradição. “A partir do momento que a gente transmite esse saber deixado pelos outros mestres mais antigos, eu acredito que a cultura vai se perpetuando”, conta.
Enquanto não esconde o orgulho da contribuição que tem dado às mulheres e às crianças na cena da cultura, ainda resta espaço para a humildade que ela insiste em cultivar.
“Se a gente não se tornar pequena, as pessoas não vão olhar nunca a gente com um olhar grande. Então me coloco como a menor de todas na hora que estou servindo na cultura popular”, disse, convocando mais uma vez o alfabeto, “na minha vida, meu filho, eu digo com todas as letras, a cultura é um pedacinho de mim. Não me imagino sem trabalhar o cavalo marinho na vida do outro”

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