No cenário recifense, o centro integra uma parte essencial para a construção do imaginário afetivo e coletivo local. A avenida Guararapes, nos dias de hoje, reflete as transformações e contradições da cidade, sendo o palco do encontro entre o frenesi urbano e a poesia do dia a dia. Entre o vai e vem dos veículos, pedestres e as mercadorias de ambulantes, o ambiente cruza diversas classes sociais com diferentes culturas, narrativas e vestígios de um Recife que não volta mais.
Do lado direito da avenida, em paralelo aos Correios e à estação de BRT, as calçadas são vestidas de antiguidades e relíquias nos famosos sebos de rua. A área, conhecida por alguns como polo livresco, abriga cerca de 15 a 20 vendedores, em uma contagem rápida, que se dividem entre estandes, barraquinhas e nos próprios pavimentos. Esses homens, a maioria senhores de idade, comercializam uma vasta quantidade de obras em suas mais variadas e raras edições, com páginas e capas marcadas pelo tempo.
Além dos livros, outro tipo de mídia chama a atenção de quem passa pelo local diariamente: a mídia fonográfica. Entre CDs empilhados, fitas cassetes e vinis empoeirados, os sebos que compõem esse pedacinho do centro criam uma atmosfera em que o tempo parece desacelerar.
Em um dia de garimpagem, um sujeito específico me chama atenção por sua simpatia e afeto com os produtos que vende. Como um bom paulista interiorano, Luiz Cunha, 68, usa todo dia uma boina, acompanhada de seu óculos pendurado no pescoço. Há 20 anos, ele tem uma vida dupla: a maior parte do ano, vive em São Paulo, atuando como técnico de eletrodomésticos e gás; na outra, reside no Recife, colecionando, trocando e vendendo antiguidades nas calçadas da Guararapes, de segunda a sábado.
Quando ouvi sua história, logo me veio à cabeça: o que levou Seu Luiz, um senhor com um pé nos 70 anos, a deixar a vida assalariada no maior polo exponencial do país para trabalhar sem local fixo nas calçadas do centro do Recife? A resposta, claro, não poderia ser outra: a paixão pela música e pela troca de vivências. Apesar de aposentado, o vendedor não larga a profissão de técnico, pois só assim consegue juntar um dinheiro a mais e revender os produtos na capital pernambucana.
Apaixonado por rock, pela Jovem Guarda e por Gal Costa, Luiz Cunha é entusiasta de música e discos desde jovem. “Já abri uma loja de discos em São Paulo, mas eu queria pegar tudo ‘pra’ mim, aqui no sebo é diferente. É o que eu mais gosto de fazer: colecionar, comprar e revender. É um hobbie, é por paixão, mas não ganho dinheiro com isso. Aqui no Recife todo mundo é apaixonado por música, mas o poder aquisitivo é muito fraco. Lá em São Paulo as pessoas têm uma renda maior”, conta.
De acordo com Luiz, seu público fiel é apaixonado por música e pelos bolachões (nome popular para os vinis), principalmente MPB e rock, mas a busca por esse tipo de mídia teve um crescimento exponencial nos últimos anos. Entre os artistas mais procurados, se destacam os doces bárbaros Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia, além de Rita Lee.
Som, letra e memória
“Quando você escuta a música pela internet, é uma experiência rápida e bonita, mas não é prazerosa como no CD ou vinil. Nada se compara a abrir o encarte, ler as letras e olhar a história do artista, por isso tem muita gente que gosta de ouvir as músicas com o disco na mão. É até difícil de explicar, é mania de colecionador. A mídia física é quase uma biografia”.
A fala do vendedor evoca um sentimento comum entre os apaixonados pela mídia analógica e pela euforia de sensações que a agulha do toca discos causa. Para a estudante Gabriela Souza, 22, o ato de ouvir música a partir de um disco de vinil transforma uma simples audição em um ritual. Manusear e sentir o disco, colocá-lo na vitrola e ajustar a agulha cria um momento de interação consciente que o streaming, apesar de sua disponibilidade e praticidade, não consegue fornecer, causando um diferencial na experiência sonora. “A vontade de colecionar veio de casa. Quando eu era mais jovem já tinha vários CDs das minhas bandas favoritas, o que era atípico porque já existia internet. Depois, compraram uma radiola e os discos foram vindo”, afirma.
Consumidora da famosa Praça do Sebo, outro ponto de vendas desses artefatos, logo atrás do polo livresco, Gabriela costuma encontrar vinis que contam histórias através das dedicatórias escritas em suas capas. Para todo bom colecionador, essas dedicatórias adicionam uma camada extra de carinho e valor ao disco, o tornando um item ainda mais único.
Em um disco do Queen, de 1985, comprado nos arredores do Mercado da Encruzilhada, encontro a seguinte frase: “26.01.05 - Para meu querido Xande, nesse dia tão especial para todos, com um beijão de quem te ama muito. De: Lara”. A tendência de escrever mensagens a mão nos bolachões surgiu no Brasil após a década de 50, com a popularização dos LPs no mercado musical, e logo se tornou uma forma de agraciar parentes, amigos e paixões.
Redescoberta e resistência
O retorno do interesse pelo som analógico em plena era de streamings e das playlists digitais, onde a música se tornou instantânea e acessível a um toque na tela, faz parte de um fenômeno cultural que vem ganhando força novamente. O relatório disponibilizado em 2023 pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), aponta que as vendas de vinis dispararam nos últimos anos, alcançando números que não eram vistos desde, pelo menos, meados dos anos 90. Em 2023, a comercialização desse material ultrapassou pelo segundo ano consecutivo as de CDs nos Estados Unidos, país responsável pelo maior consumo de música em níveis globais, algo que parecia inimaginável uma década atrás. Esse fenômeno vem acontecendo em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil, onde o mercado de LPs cresceu 136% no último ano, segundo dados do Pró-Música Brasil (PMB).
Pode parecer curioso, mas o crescimento desse consumo no país não é por acaso: o Brasil se encontra entre os dez dos maiores mercados fonográficos mais lucrativos do mundo, ocupando a nona posição. A pesquisa da IFPI revelou ainda que os brasileiros escutam cinco horas a mais de músicas em relação à média mundial geral, com nove métodos diferentes.
Localizada na Rua Sete de Setembro, perto da Rua do Hospício e do Teatro do Parque, a loja “Vinil Alternativo” é um ponto de resistência do mercado analógico na cidade desde o ano de 1990. Elvis Miranda, 37, comprou o estabelecimento dos pais, e é um entusiasta musical de nascença. Ele conta que tinha apenas três anos quando o lugar abriu, então cresceu nesse meio e veste a camisa desde então. Com uma experiência diferente dos sebos, a loja foca na comercialização de discos novos, lançamentos de artistas contemporâneos e reedições de álbuns clássicos, além de vender também acessórios e outros itens de consumo para fãs de música, como CDs, broches, camisas e produtos de decoração.
“Nós nunca deixamos de vender discos aqui por uma questão de tradição, porque antes as vendas eram insignificantes. No período de 1998 até 2015, os vinis não eram algo que fariam diferença se continuássemos vendendo aqui ou não, mas eram uma paixão do meu pai. Hoje em dia, já podemos dizer que a procura de vinil e CD é de 50% para cada”, afirma.
Segundo Elvis, apesar do Brasil ocupar posição de destaque no consumo de música, acabou sendo bastante prejudicado no mercado fonográfico porque, por um tempo, a fabricação de LPs foi interrompida. “Aqui foi o único país em que se parou de produzir vinis por um tempo, onde tivemos a última produção em massa em 1997, com a trilha sonora de uma novela. No resto do mundo, mesmo que não houvesse um consumo significativo, os LPs ainda eram produzidos”.
Para a reportagem, o dono da “Vinil Alternativo” relata que, mesmo nos tempos de baixa procura, sempre houve uma clientela fiel composta por pessoas de idade. No entanto, o público jovem vem ganhando força e se mostrando cada vez mais presente na redescoberta do disco de vinil. Nos últimos seis anos, eles vêm dominando a procura por mídias físicas, frequentando mais do que nunca os sebos e estabelecimentos como o de Elvis.
Seja por nostalgia ou saudosismo, é fato que o passado nunca esteve tão na moda. Da música ao cinema, do design à estética, o retorno de tendências e formas de expressão de outras épocas reflete na busca por autenticidade em um mundo cada vez mais digital e efêmero. Sem dúvidas, esse movimento de volta ao passado é, em grande parte, impulsionado pela internet e pelas redes sociais, que possibilitam o acesso a uma vasta gama de referências culturais, que são ressignificadas e reinterpretadas pela juventude. Esse fascínio indica uma forma de resistência à velocidade e à automação da cultura contemporânea, em que se busca uma conexão cada vez mais profunda e palpável com a forma que se consome arte na atualidade.
“A cultura,
A civilização,
Elas que se danem
Ou não” – Gal Costa, Cultura e Civilização (1969)
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