“São Luiz tem que pulsar como espaço de encontro, mas também de disputa narrativa”, reflete Pedro Severien sobre nova fase do cinema de rua
- Isabel Bahé
- há 5 dias
- 6 min de leitura
Em conversa com a Manguetown Revista, o novo programador do São Luiz elencou as prioridades e desafios de um dos cinemas de rua mais antigos em atividade no Recife

No início de abril, o cineasta e realizador pernambucano Pedro Severien assumiu o posto de programador do Cinema São Luiz, cerca de cinco meses após sua tão esperada reabertura. Um dos maiores equipamentos de cultura, e símbolo de resistência de uma experiência de viver o cinema que foge à lógica dos shopping centers, o São Luiz foi interditado por mais de dois anos após graves problemas estruturais causados pelas chuvas de 2022.
As reformas continuam, mas o cinema segue com programações nos finais de semana desde sua reinauguração com o Festival Janela de Cinema do Recife, que aconteceu em novembro do ano passado. Enquanto não há uma programação “integral”, o foco é continuar atraindo público para retomar o fluxo do cinema.
Além disso, em conversa com a Manguetown Revista, Pedro Severien - que foi diretor e roteirista de filmes como “Fim de Semana no Paraíso Selvagem” (2022), “Canção para minha irmã” (2012), “Loja de Répteis” (2014) e “Todas as cores da noite” (2015) - lembrou a sua relação com o São Luiz, elencou a suas prioridades como programador e os principais desafios para esta retomada.
Leia a entrevista completa abaixo:
Qual é a tua história com o Cinema São Luiz?
Pedro Severien: O Cinema São Luiz é, para mim, um lugar de formação, tanto estética quanto política. Foi lá que participei de diversos festivais que exibiam filmes capazes de ativar meu olhar — desde obras históricas até produções contemporâneas e locais. Esse contato com a produção pernambucana, especialmente através do FestCine, foi fundamental para mim. Exibi todos os meus filmes no FestCine, que inicialmente ocorria no Teatro do Parque (quando ainda era o Festival de Vídeo) e depois migrou para o São Luiz como FestCine, o Festival de Curtas de Pernambuco. Acho que esse é um espaço de grande formação e ativação cultural no estado.
[O São Luiz] Foi um local muito importante para mim, sabe? Um espaço de debate, de diálogo, de exibir filmes em casa — e também de outros festivais, como a Janela Internacional de Cinema, que acontece no São Luiz e traz um repertório incrível: filmes internacionais, brasileiros, históricos... minha relação com o cinema vem daí.
É um lugar que pulsa no centro da cidade, conectando o cinema à memória, ao espaço urbano e à política. Quando era adolescente, ainda frequentei as sessões de arte do cinema, na época em que ele era gerido pelo Grupo Severiano Ribeiro. Foram momentos muito marcantes. Lembro de ir sozinho várias vezes — assisti “Noites de Cabíria” (1957) lá, e foi uma daquelas experiências realmente transformadoras.
Acompanhei todo o processo de mudança: o fechamento do São Luiz, a gestão temporária por uma faculdade privada e, depois, a retomada pelo poder público, com a reabertura voltada para os trabalhadores do audiovisual pernambucano. Enfim, tenho uma relação profunda com esse cinema: ele atravessa minha história e minha trajetória no cinema.
Como é, para você, assumir o posto de programador do São Luiz?
Pedro Severien: Olha, assumir o posto de curador e programador do Cinema São Luiz é uma honra muito grande. Eu chego a esse lugar com um senso de responsabilidade enorme, mas também com uma vontade imensa.
Pra mim, fazer a curadoria de um cinema como o São Luiz é entender o cinema como uma ferramenta de impulso para a cultura, para a arte, para as sensibilidades. É uma ação que não existe isolada, sabe? Não é um trabalho desconectado do mundo. Pelo contrário, é justamente onde o mundo se expressa, onde a cidade, a arte, encontram uma plataforma de diálogo. Então, são muitas camadas de envolvimento.
É preciso cuidar para que esse lugar mantenha toda a sua força histórica e artística, e que a gente consiga, com muita escuta, mas também com criatividade e inovação, traduzir esses anseios coletivos na tela. E, ao mesmo tempo, apresentar um olhar que é meu também, fruto da minha trajetória, do que eu chamo de um “fazer cinema múltiplo”.
Não se trata só de fazer filmes, mas de juntar os fazeres: o cineclube, o pedagógico, a pesquisa, a luta política pelas mobilizações e políticas públicas, a crítica... é essa reunião dos fazeres cinematográficos que me motiva, e é isso que vou buscar colocar em prática em todas as ações lá no Cinema São Luiz.
Quais são as prioridades que você elencaria nesta nova fase do São Luiz?
Pedro Severien: A prioridade número 1 é manter o cinema funcionando, ou seja, garantir a programação de fim de semana, porque isso permite que as obras de restauração e reparo avancem. São duas frentes que caminham juntas: mantê-lo aberto porque esse fluxo de pessoas é o que preserva um espaço histórico. Preservação, pra mim, é isso: manter um lugar vivo, aberto ao público, e assim ele se mantém vitalizado. Se um cinema como esse, ou qualquer espaço histórico, fecha, ele deteriora.
Então, o desafio é seguir exibindo filmes enquanto concluímos as reformas, para que, uma vez finalizadas, a gente retome uma programação mais ampla durante a semana também. Esse tem sido o trabalho desde que assumi, com uma certa urgência, né? A ideia é não parar.
Nesse mês de abril, por exemplo, estamos fortalecendo as mobilizações indígenas dentro do Abril Indígena. Em maio, já teremos outra programação, com um recorte temático diferente, mas sempre dialogando com as demandas que vêm dos festivais, dos lançamentos importantes do cinema brasileiro. É essa capilaridade que o cinema tem com a produção contemporânea que a gente quer manter, sabe?
Enquanto isso, a equipe que cuida da parte física dos espaços culturais segue trabalhando para que, em breve, o São Luiz volte a operar com toda a sua potência, tanto na estrutura quanto na exibição de filmes.
Quais são os desafios que você enxerga ao assumir esta função num cinema tão importante?
Pedro Severien: Bem, o principal desafio agora no Cinema São Luiz é criar uma programação que mobilize a cidade em toda a sua diversidade, que atravesse classes sociais, territórios e diferenças. Que ele seja, de fato, um espaço cada vez mais público.
A gente sabe que as salas de cinema hoje enfrentam um cenário complexo: a ascensão das plataformas de streaming, a reconfiguração da produção internacional, o domínio dos grandes conglomerados de mídia... É uma luta efervescente. As salas comerciais estão tomadas por blockbusters globais, e essas corporações agora também se aliam ao streaming. Nesse ecossistema muitas vezes predatório, a sala de cinema pública precisa se afirmar.
Não se trata só de lotar a sala, mas de fazer isso com qualidade e consciência histórica. Porque o cinema brasileiro é urgente: ele é ferramenta econômica, mas também expansão das nossas identidades, guardião da memória, formação do olhar. E essa formação é política, é formação para a vida.
O maior desafio, então, é transformar o cinema em instrumento de ação nesse contexto. Um lugar onde a exibição seja resistência e convocação, onde a tela dialogue com as demandas do nosso tempo. O São Luiz tem que pulsar como espaço de encontro, mas também de disputa narrativa. Porque sem cinema brasileiro na tela, faltam pedaços da nossa própria história.
Você está há mais de 25 anos atuando como cineasta, então conhece muito bem a cena do cinema pernambucano. Como você interpreta a importância do cinema de rua atualmente, e como você pretende continuar esse legado?
Pedro Severien: Olha, de fato, eu venho trabalhando em várias funções há um quarto de século, sempre com um interesse profundo pelo cinema pernambucano. Porque acredito que trabalhar o local é pensar o global sem muros, é olhar a partir de um lugar específico, mas com horizonte aberto. Essa consciência do nosso território, das nossas dinâmicas e singularidades, é o que faz um cinema autêntico. E isso, inclusive, tem sido reconhecido internacionalmente.
Hoje, vejo o Cinema São Luiz como um cinema de rua, de calçada, de rio e de noite. Ele impacta o centro do Recife, dialoga com o Capibaribe - que precisamos ocupar mais!- e se integra à vida noturna da cidade. Pra mim, isso é pensar o espaço urbano de forma integrativa, unindo pessoas, grupos diversos, arte, cultura e bem-estar numa ação transformadora. Queremos uma cidade mais brilhante, acolhedora mas também interventiva e inventiva, capaz de criar novas formas de viver na fronteira entre arte e vida.
O São Luiz, pra mim, carrega justamente esse emblema: a poesia do cotidiano. E isso se materializa no trabalho incansável de toda a equipe – da gestão à projeção, da bilheteria à limpeza –, que cuida daquele espaço com um amor prático, não idealizado. Amor que se traduz em cuidado, acolhimento e, sobretudo, invenção.
É isso que me motiva a seguir: honrar uma história construída por figuras como Geraldo Pinho, programador que formou gerações e ativou o cinema pernambucano. Estar ali é, para mim, manter viva essa fonte onde o cinema e a vida se alimentam mutuamente.
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